domingo, 5 de fevereiro de 2012

O lado bom do cocô

O lado bom do cocô: apura uma denúncia infundada de e-mail alarmista recebido por ela:



O email era alarmista, e, como tantos outros, quase teve imediatamente o destino da lixeira. Trocando em miudos, a mensagem, repassada a mim e vários outros pesquisadores por um doutorando do Instituto, era a seguinte: "não compre iogurte Activia, pois ele é feito com fezes!". Sim, de fato os tais microorganismos que caracterizam a contribuição do iogurte Activia para a boa composição da sua flora intestinal (que por sinal não é flora, nem fauna, pois bactéria não é planta nem animal!) habitam regularmente o intestino de humanos. Logo, deduz "brilhantemente" o email, numa falácia infantil, a fonte das "bactérias boas" do iogurte Activia seriam... fezes humanas misturadas ao iogurte!

A falácia é que uma coisa não implica a outra. Afinal, bactérias são rotineiramente cultivadas em laboratório, em placas de cultura perfeitamente limpas e estéreis onde elas se reproduzem sobre camadas de gelatina. Supus que tal fosse a origem, perfeitamente inócua, das bactérias do Activia, descobertas e registradas pela Danone; nesse caso, nada contra ingerir bactérias de origem tão pura, mesmo que o habitat normal delas (e procedência original) seja nossos intestinos. Aliás, não fosse esse o seu habitat, de nada serviria ingerir as ditas-cujas no iogurte.

Pensei em dar ao email o mesmo destino da mensagem imbecil que, dois meses atrás, exortava o leitor a não se vacinar contra a gripe H1N1; pensei em escrever de volta ao doutorando dizendo que a mensagem era alarmante sem razão de ser; mas ela acabou ficando na caixa de entrada.

(Em tom escatologicamente relacionado, no New York Times de 12 de julho de 2010 o escritor Carl Zimmer relata um estudo recente sobre como os micróbios que abrigamos, dez vezes mais numerosos que nossas proprias células, equilibram nosso corpo. No estudo publicado no Journal of Clinical Gastroenterology, liderado por Alexander Khoruts, gastroenterologista da Universidade de Minnesota, uma mulher com diarreia crônica incurável ficou boa em apenas um dia após receber em seu cólon uma injeção de... fezes do seu marido, processo pouco usado mas conhecido da ciência chamado, muito apropriadamente, de "transplante de fezes". Khoruts, que testou a flora microbiana intestinal da mulher antes e depois do transplante, explica. Antes, "as bactérias normais não existiam nela"; depois, sua não-fauna, não-flora intestinal se normalizou, graças à colonização pelas bactérias fecais doadas pelo marido. "Para você, dou até meu cocô", quem diria, é uma prova de amor...)

A estória do Activia teria ficado por isso mesmo não fosse minha birra com o glúten, que resolvi há dois anos cortar da minha alimentação, com resultados maravilhosos. Não digo que funcione para todos, mas para mim é muito melhor a vida sem pães, massas, bolos e biscoitos - talvez sinal de uma leve intolerância ao glúten, subclínica, como me disse um médico. Mas enfim. Na falta do Nestlé branco de sempre, esgotado no supermercado, tinha um Activia natural na geladeira, que seria parte de meu café da manhã de ontem. Seria, se não fossem as palavras: "contém glúten". Como assim, se os ingredientes são apenas leite integral, leite em pó desnatado, e fermento lácteo, quando o glúten é encontrado somente no grão de trigo e alguns outros cereais?

O número do atendimento ao consumidor estava no rótulo, ainda tinha 15 minutos até o táxi chegar, então resolvi testar a experiência de falar com o SAC da Danone - e, de quebra, aproveitar para tirar a limpo a estória do "iogurte-feito-com-fezes". O menu eletrônico era surpreendentemente curto, e em instantes estava eu falando com uma atendente. Que me explicou, em um tom bem informado e natural, sinal de que não estava apenas lendo de um monitor, que o aviso era apenas para alertar às pessoas realmente intolerantes a qualquer resquício de glúten que, por causa das máquinas compartilhadas com outros produtos, poderia haver traços de glúten no Activia - mas apenas traços. Muito bom.

"E quanto ao fermento lácteo, como essas bactérias são produzidas?", perguntei, esperando (torcendo!) que a resposta fosse "em cultura estéril, em nossa fábrica". Resposta, meio titubeante: "são produzidas como em todas as outras empresas, a partir de fermento lácteo". Não, não, isso não responde à pergunta. Elas são cultivadas na fábrica, ou são extraídas de plantas, ou de animais? "São extraídas de animais, senhora".

Hmmm. Agradeci e desliguei o telefone tentando me convencer de que não há nada mais natural do que recolher e purificar bactérias de uma fonte naturalmente enriquecida, ou seja, fezes animais, ou no mínimo seus intestinos, eliminando todos os outros contaminantes - inclusive as bactéricas E. coli, mais conhecidas como coliformes fecais, responsáveis por no mínimo baitas dores de barriga em altas doses. Não funcionou. Minha ínsula anterior olhou para o potinho de iogurte e mandou pousar a colher, desgostosa com a imagem.

Mas antes que você jogue no lixo todos os potes de Activia, leitor, só mais um pouquinho de paciência. Notei que minha pergunta não estava completa. É claro que a origem do bacilo Dan regularis é o intestino animal, se não o humano, pois é lá seu habitat natural. Mas isso não significa que os potes de iogurte recebam gotinhas de fezes nem extratos mais ou menos purificados delas.

Liguei de novo para o SAC (se quiser, ligue você mesmo: 0800 7017561). Faço minha pergunta agora de maneira mais precisa, e Paloma, outra atendente, me responde tranquilamente: o bacilo tem origem animal, mas ele é cultivado, puro, em laboratório, e adicionado ao iogurte. Insisto, refaço a pergunta de outras formas. Não, senhora; trabalhamos somente com culturas puras em laboratório. Certo.

Constato, assim, o poder da ínsula anterior, parte do córtex cerebral que registra nosso estado corporal interior e nossas sensações subjetivas, como o nojo/desgosto. O iogurte é o mesmo, e eu sempre gostei do seu sabor e textura. Mas a suspeita de algo de podre em seu meio foi suficiente para me fazer, por algumas horas, torcer o nariz e pousar a colher. Se minha ínsula anterior agora está feliz novamente? Vou lá na cozinha testar...


http://www.suzanaherculanohouzel.com/journal/2010/7/27/o-lado-bom-do-coco.html

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